Várias vezes utilizámos a expressão entregar a carta a Garcia. Isto, a propósito de um conjunto de reflexões e de acções relativas à nossa contribuição para a dignificação do autocaravanismo, e para a obtenção do respeito público (do público e das autoridades) para as propostas credíveis que o Movimento do Autocaravanismo pode, tem feito e deve continuar a fazer, no desempenho de um direito e dever de cidadania.
Felizmente são muito escassas as incompreensões que esta atitude tem suscitado, e essas, situam-se apenas em dois quadradantes:
- o proveniente do frenético ataque pessoal, e por vezes também anónimo, proveniente do despeito, e de uma atitude ignóbil, persecutória, de terra queimada e de bota abaixo, que se auto-descredibiliza,
- e o que tem origem em filosofias libertárias, anarquistas e poéticas, próprias de quem não teve, não tem, nem quer ter contribuições de cooperação através da participação objectiva na solução de problemas colectivos.
Como é normal em todos os sectores de actividade, uma imensa maioria silenciosa, distante e alheada, tudo ignora e nem se dá conta do que muitas vezes está em jogo.
Todas essas posições são legítimas, como também é legitimo que haja quem opte pela intervenção cívica, pela batalha das ideias e de ideais, com o objectivo de por mérito próprio destas, contribuir, (sem denegrir) para o bem comum. A esta atitude qualifico-a como levar a carta a Garcia, isto é, num Estado de Direito, levar essas ideias e ideais a quem tem por função institucional dar-lhes, ou não, seguimento, desde o poder autárquico ao poder central, desde o poder legislativo (ou parlamentar) ao poder executivo (ou governativo), desde o director ou funcionário administrativo ao Provedor de Justiça, desde o máximo representante individual do poder político democrático (O Presidente da República) ao colectivo dos tribunais, se necessário for.
O que está em causa é lutar pelo Império da Lei, e não, pela lei da Selva.
Face à não aprovação pela actual maioria parlamentar do projecto de lei nº 778/X sobre o autocaravanismo -entenda-se na generalidade, para aprofundar depois a redacção na especialidade, só há que continuar a porcurar Garcia, porque este não esteve na AR no dia 25 de Junho de 2009.
Mas que se entende por entregar a carta a Garcia?
melhor do que ninguém leia-se Nuno Crato, que escreveu no Expresso este texto, já em 13 de Setembro de 2003.
Uma carta a Garcia
«Como surgiu a expressão ‘Levar uma carta a Garcia?»
Só agora respondo, pois demorei muito tempo a reencontrar um livro que tinha lido há anos e que se intitula, precisamente, Uma Carta para Garcia.
Trata-se apenas de um folheto, escrito em 1899 pelo jornalista e escritor norteamericano Elbert Hubbard (1856-1915) e editado em português pela «Seara Nova», em 1963. O seu autor é relativamente desconhecido entre nós, mas a Amazon lista 43 obras suas ainda à venda e muitas outras esgotadas. O Google encontra 36 mil sítios da Internet com referências a esse autor.
Uma Carta para Garcia («A Message to Garcia») foi o maior êxito literário de Hubbard. Imprimiu mais de 40 milhões de exemplares e foi traduzido em dezenas de idiomas. Contava apenas uma história de profissionalismo, mas fazia-o tão bem que inspirou muitas gerações de leitores. O episódio é simples e vale a pena relembrá-lo.
«Quando rebentou a guerra entre Espanha e os Estados Unidos», começa Hubbard referindo-se à guerra de 1898, «era necessário entrar rapidamente em comunicação com o chefe dos insurrectos cubanos. O general Garcia encontrava-se nas montanhas agrestes de Cuba - ninguém sabia onde. (em o correio nem o telégrafo o poderiam alcançar. O Presidente dos Estados Unidos tinha de assegurar, com a maior urgência, a sua cooperação».
Nessa altura, o Presidente McKinley encarregou um jovem militar chamado Rowan de entregar uma carta ao general. Quatro dias depois, Rowan «desembarcou, de noite, num pequeno barco, na costa de Cuba e internou-se no mato. Ao cabo de três semanas saiu pelo outro lado da ilha, depois de ter atravessado a pé um país hostil e de ter entregue a carta a Garcia».
A história desta viagem é certamente interessante, mas Hubbard diz que não é relatá-la que pretende. «O que desejo sublinhar é isto: o Presidente Mac Kinley deu uma carta a Rowan para a entregar a Garcia. Rowan pegou na carta e não perguntou: ‘Onde é que ele se encontra?»
«Ora aí está um homem cuja figura devia ser esculpida em bronze», diz
Hubbard. E explica, por contraste: «Experimente o leitor: está sentado no seu escritório e tem seis empregados à sua disposição. Chame qualquer deles e diga-lhe: ‘Faça o favor de consultar uma enciclopédia e escrever uma nota breve sobre a vida de Correggio’ (...) Julga que ele irá, sem demora, cumprir a tarefa? (Nunca).
Olhará para o leitor com olhos desanimados e fará uma série de perguntas: Quem foi Correggio? Que enciclopédia hei-de usar? Onde está a enciclopédia? (não foi para isto que me empregaram! (não quererá dizer Bismark? Por que não é o Carlos que o escreve? Já morreu? Há pressa? (não será melhor que lhe traga o livro para ver? Para que quer a nota?»
Estes curtos extractos são o suficiente para perceber a tese do livrinho de Hubbard e para tornar clara a origem e o significado da expressão «levar a carta a Garcia». Quem se interesse pela cultura científica achará graça à primeira frase do texto de Hubbard: «Um homem destaca-se no horizonte da minha memória como Marte no periélio...»
Passadas duas semanas sobre o extraordinário brilho do planeta na sua oposição de periélio, a coincidência é mais que curiosa. Até para ler um panfleto jornalístico, velho de mais de 100 anos, é útil perceber um pouco de astronomia.
(Nuno Crato)
(Nuno Crato)
Nota da Newsletter: Periélio é a menor distância de um planeta em relação ao Sol.
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